Não é coincidência

Em nosso tempo, domina o homem-massa; é ele quem decide. Não se diga que isto era o que acontecia já na época da democracia, do sufrágio universal. No sufrágio universal não decidem as massas, senão que seu papel consistiu em aderir à decisão de uma ou outra minoria. Estas apresentavam seus “programas” – excelente vocábulo –. Os programas eram, com efeito, programas de vida coletiva. Neles convidava-se a massa a aceitar um projeto de decisão.
(...) O fenômeno é sobremaneira estranho. O Poder público acha-se em mãos de um representante de massas. Estas são tão poderosas, que aniquilaram toda possível oposição. São donas do Poder público em forma tão incontrastável e superlativa, que seria difícil encontrar na história situações de governo tão prepotentes como estas. E, entretanto, o Poder público, o Governo, vive ao dia; não se apresenta como um porvir franco, não significa um anúncio claro de futuro, não aparece como começo de algo cujo desenvolvimento ou evolução seja imaginável. Em suma, vive sem programa de vida, sem projeto. Não sabe aonde vai porque, a rigor, não vai, não tem caminho prefixado, trajetória antecipada. Quando esse poder público tenta justificar-se, não alude para nada ao futuro, senão, pelo contrário, fecha-se no presente e diz com perfeita sinceridade: “Sou um modo anormal de governo que é imposto pelas circunstâncias”. Quer dizer, pela urgência do presente, não por cálculos do futuro. Daí que sua atuação se reduza a evitar o conflito de cada hora; não a resolvê-lo, mas a escapar dele imediatamente, empregando os meios que sejam, ainda à custa de acumular com seu emprego maiores conflitos sobre a hora próxima. Assim tem sido sempre o Poder público quando o exerceram diretamente as massas: onipotente e efêmero. O homem-massa é o homem cuja vida carece de projeto e caminha ao acaso. Por isso não constrói nada, ainda que suas possibilidades, seus poderes, sejam enormes.

Trecho de “A Rebelião das Massas”, de José Ortega y Gasset


Quando li isso, quase caí da cadeira. Nunca vi descrição tão precisa do momento em que vivemos. O livro é de 1926, mas o homem-massa está entre nós.

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