Tinha que ser preto...

Januário Alves Santana, 39 anos, baiano, mas mora em São Paulo há dez anos. Lá ele se casou, e teve dois filhos. Trabalha duro para dar uma vida digna à esposa e às crianças. Como qualquer pessoa, foi ao supermercado fazer compras. Sua filha mais nova estava dormindo e Januário decidiu ficar no carro enquanto a esposa e o outro filho entraram na loja.

Até aí, tudo bem. Qual o problema de um pai de família ficar no carro com a filha pequena, no estacionamento de um supermercado esperando a esposa? Nenhum. Mas Januário tinha que ser preto. E, pelo visto, no Carrefour, pretos não podem ter Ecosport ou qualquer outro carro que não seja o meio de transporte esperado no imaginário coletivo dos jagunços que fazem a segurança da rede varejista. Ele foi acusado de ser um ladrão de carros, levado para uma sala e agredido, a ponto de ter o seu maxilar comprometido. Depois dos socos, veio um policial executar a agressão moral. Você tem cara de quem tem umas três passagens pela polícia, disse o PM. Depois,de muito custo Januário conseguiu se livrar do terror que passara.

O episódio serve para mostrar um fato que acontece cotidianamente em nosso país. Não adianta disfarçar, o preconceito no Brasil existe sim. Nas relações comerciais elas são mais explicitas. Quantas situações constrangedoras muitos negros já passaram, causadas por aquelas moças lindas, mas que usam as roupas emprestadas pela loja e que são mais pobres que os supostos clientes? Quantos vendedores de automóvel duvidaram da capacidade de compra daquele jovem, por conta da cor da sua pele? Quantos senhores negros foram tratados como choferes de seus próprios carros? Quantas senhoras negras ainda serão tratadas como serviçais pelos porteiros dos prédios de luxo?

O mais intrigante é o fato de que muitas das situações mais humilhantes de preconceito são provocadas por pessoas pobres (brancos e negros), contra outras que tem condições financeiras e intelectuais mais desenvolvidas do que estes. Com certeza, nenhum dos trogloditas do espancamento no Carrefour tem condições de comprar um carro como o de Januário. Sequer capacidade financeira para conseguir um financiamento como fez a vítima.

A esposa de Januário chorava ao dizer que teme pelo futuro dos filhos, tão pretos quanto o pai. Eu não iria tão longe. Tenho medo por mim mesmo e por tantos outros Januários que conheço. A verdade é que esse acontecimento assusta. É a sombra de um monstro que persegue todos os negros que saem da vala comum que as circunstâncias históricas nos impõe. Januário não é um só. Januário sou eu. Força, Januário! Dias melhores virão.

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