(Quase) Tudo Certo.

Ela estava ali, sempre, do lado, tão perto. Tão esquecida. Tudo funcionava bem.  A casa arrumada, a comida pontual, as roupas limpas e cheirosas, as crianças na escola. Os seus amigos a adoram, seus pais também.

Ela não esquece datas, contas a pagar, não se atrasa para o trabalho. Ela estudou, se preparou, foi promovida e não saiu dali. Ela amadureceu, já é plena de idéias e sentimentos. Ainda é cheia de desejos e sonhos que você não ele não se deixou apresentar. Ela quis, deu a entender e você fingiu ignorar. "Ela anda com uns pensamentos estranhos. Que saco!", pensou você. Ela ainda é bela. Diferente, mas bela. A saborosa fruta mordida que Cazuza cantou. Você cada vez mais seguro. Da segurança vem a distância dos beijos formais, das transas rituais e dos assuntos habituais, quase relatórios semanais.

Eis que surge alguém. Ele talvez não seja mais viril, mais rico, mas forte ou mais novo que você. Mas ele a olha diferente de você. Ele a olha nos olhos, ouve com atenção. Dos bons ouvintes vêm as boas respostas. Ela achou alguém para admirá-la, para cortejá-la e fazê-la se sentir importante, quase essencial. Em pouco tempo, eles já estão afinados, trocam segredos e leem pensamentos mútuos.

Esse alguém não veio do nada. Não é ninguém mais do que tudo o que ela guardava em seus desejos mais íntimos. Desejos estes que ela acreditou poder revelar a você. Mas com o passar do tempo ela foi demovendo esta vontade e a guardou na sua caixinha de sonhos impossíveis. Esse alguém agora vive nos pensamentos dela. Dias e noites. Ela é só corpo alegremente presente e anestesiado para cumprir as obrigações sócio-matrimoniais.

Pode ser que você perceba algo diferente, pode ser que não. É bem provável que você nunca saiba do que se passa. Ela poderá ir embora, poderá permanecer. Talvez ele desapareça e nunca mais dê notícias. Tudo voltará ao normal. A rotina, as lacunas e até você. Ou melhor, quase tudo... Porque ela, jamais.

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