Seedorf e a Velha Fronteira

Clarence Seedorf, deixa não só o Botafogo, mas também a função de jogador. O atleta ganhou tudo que poderia ganhar. Sim, faltou uma Copa do Mundo. Mas Seedorf é holandês e a Holanda campeã do mundo será um sinal de que o fim estará próximo. Jogou em alguns dos clubes os quais todo jogador sonharia jogar. Perfilou com e/ou enfrentou os maiores de seu tempo. Faz parte de uma escola de futebol europeia que tinha o Brasil como inspiração maior. Um craque.

Craque de bola e de postura. Depois de todo o sucesso no Velho Mundo, veio disputar os campeonatos carioca e brasileiro pelo Botafogo. Colocou seu físico e seu intelecto privilegiados à serviço do Glorioso, nos campos esburacados do interior do Rio de Janeiro e nos melhores palcos do Brasil. Teve que aturar a imbecilidade crônica da cartolagem tupiniquim. Fez o Maracanã o aplaudir de pé. Chorou como menino e, principalmente, lutou como homem. Enquanto nossos pipoqueiros internacionais voltam para o Brasil em estados físico e moral vergonhosos, dando mal exemplo e promovendo orgias às vésperas de partidas decisivas, Seedorf aos 37 anos exibia um físico de velocista olímpico e dava conselhos aos mais jovens para pensarem em suas carreias no longo prazo. Pai de quatro filhos, fluente em vários idiomas, empresário de sucesso, orgulho tanto para Holanda quanto para o Suriname (país de nascença), deu uma injeção de reflexão, personalidade e compromisso no futebol. Fez o que nenhum jogador brasileiro, depois de consagrado no exterior, fez pelo futebol verde-amarelo. Temos uma dívida enorme com Clarence Seedorf.

Para os que acham que assumir o comando do Milan A. C. é uma promoção, eu digo que é talvez o maior do desafios da vida de Seedorf. O futebol ainda tem barreiras enormes, Seedorf será somente o segundo técnico negro a comandar uma equipe da elite do Calcio. Eis aí a grande questão, no futebol europeu são frequentes as manifestações racistas explicitas. A Itália, em particular, é fornecedora constante de casos de discriminação negativa a jogadores negros. Seedorf é querido em Milão. Mas não sabemos se é o suficiente para resistir à paixão, muitas vezes insana e agressiva, de uma torcida em descontentamento com seu time. O racismo velado do futebol é algo incômodo. Aqui no Brasil é incômodo e histórico. Há posições, dentro e fora das quatro linhas, que são muito difíceis de serem ocupadas por negros. Goleiros e técnicos são os casos mais notórios. Raros são os casos de goleiros defendendo as traves dos times da elite do futebol brasileiro, as da Seleção mais ainda.

Parece que desde Barbosa (goleiraço do Vasco da Gama, que tomou o gols do Maracanaço), ser goleiro e negro se tornaram quase incompatíveis. Na Canarinho, depois de 1950, somente Dida e Jefferson vestiram a camisa 1. Dida foi titular em uma Copa (2006), defensor notório de pênaltis, era acusado de frio demais e lento demais. Atuou por 10 anos no mesmo Milan de Seedorf e ainda joga em alto nível, aos 40 anos de idade. Jefferson é o negão da vez.  Nos últimos anos, os confrontos decisivos entre meu querido Flamengo e Botafogo foram constantes. Há dois anos, eu torço para ver o Jefferson falhar e nada. É o melhor goleiro que o país tem, sem dúvidas. Praticamente certo no plantel de Luiz Felipe Scolari para a Copa de 2014, já revelou algumas vezes o quanto sofreu para provar que a cor da sua pele não tem nada a ver com seu grande talento. O próprio Felipão já declarou que teve que enfrentar o preconceito, ao promover Jefferson das divisões de base do Cruzeiro. “Uma pessoa lá do departamento amador (do Cruzeiro) tinha contratado um outro goleiro de Londrina, um alto e loiro. E o Jefferson é preto, grandão.” Revelou o treinador, em entrevista ao Esporte Espetacular. Jefferson é uma espécie de embaixador negro no gol do Botafogo e da Seleção.

Nos banco do comando dos times da elite, acontece o mesmo. Os compatriotas de Seedorf, Ruud Gullit e Frank Rijkaard também treinaram grandes times europeu. No Brasil, pinça-se alguns casos. Dida (Fluminense), Junior (Flamengo e Corinthians), Cristóvão Borges (o último bom técnico que o Vasco da Gama teve), Andrade (campeão brasileiro pelo Flamengo), Carlos Alberto Torres (idem), são alguns dos parcos exemplos do que acontece no mercado nacional. Até na África, as seleções nacionais optam por técnicos europeus. Vai entender... A verdade é que o futebol, como no resto da vida, ainda se guarda um ranço de que o negros podem ocupar certas posições e outras não lhes são livremente permitidas. Justo no futebol, onde os astros podem ser altos ou baixos, negros, brancos, amarelos, ou a mistura disso tudo. Justo no futebol, onde os magrelas vencem os fortões e os gorduchos desmontam esquemas defensivos com apenas um lançamento. Justo o futebol, onde nanicos derrubam gigantes com a rapidez de seus dribles. Justo no futebol, onde, ironicamente, a cor da sua pele vai determinar a sua posição em campo ou forma dele.


Só nos resta desejar muita sorte e sucesso ao negão Seedorf, agradecê-lo e lembrá-lo que ele sempre será bem-vindo nas banda de cá.

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